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terça-feira, 23 de setembro de 2014

4. O REI


A figura masculina colocada no primeiro plano do painel do Infante tem sido geralmente identificada como D. Afonso V. Partilhamos também esta opinião a que não é alheia o facto de a personagem ter apenas um joelho no chão (posição régia) e de ser a figura masculina mais ricamente vestida (fig.5)[1].

Fig.5
Estranhar-se-á que o rei esteja presente numa obra que evoca a memória do seu tio e sogro contra o qual batalhou em Alfarrobeira. Igualmente causará admiração que, neste contexto, defendamos que tenha sido um dos patrocinadores dos Painéis.

Recorde-se que já tinham decorrido entretanto cerca de vinte anos desde o encontro de Alfarrobeira e que o rei já tinha perdoado, há muito, aqueles que tinham apoiado o infante D. Pedro. Assim é natural que D. Afonso V reconheça que chegou finalmente o momento em que deva participar numa homenagem àquele que foi seu tutor e pai da sua mulher. Aproveita também esse momento para dar instruções para que pintura inclua também um painel que recorde a sua amada esposa, falecida dez anos antes. Mal saberá ele os Painéis irão incluir mensagens escondidas que de certo modo o criticam pelo comportamento que assumiu perante os restos mortais do infante D. Pedro, como iremos analisar em capítulos seguintes.

Na sequência daquela batalha é publicada uma carta de castigo (Outubro de 1449)[2] que retira as honras e mercês, anteriormente atribuídas pelo rei, e que dá instruções para confiscar os bens de todos aqueles que estiveram ao lado do infante D. Pedro. Contudo, decorrido pouco mais de um ano (Julho de 1450) após aquele trágico confronto, D. Afonso V começa a conceder pontualmente cartas de perdão aos partidários do seu tio, cujo número aumenta após o nascimento da sua filha D. Joana. Em Julho de 1455[3], agora no seguimento do nascimento do futuro D. João II, é publicado o perdão geral para todos aqueles que ainda não tinham sido absolvidos e que tinham apoiado o ex-regente. Em particular este indulto refere, no que respeita à família de D. Pedro, que “…revogamos, e annullamos, cassamos, anichilamos em todo o que em ellas se contem he dito, pronunciado, scrito, e queremos, e mandamos, e asy he nossa merce, e vontade que a dita chamada, e ajuntamento, assuada, vinda, e estada no dito lugar dalfarroudeira, que o dito Infante nosso Tio fez, naõ faça a elle, nem aos que delle descendem, ou descenderem,… algum abatimento em suas honras, famas, lealdade, bom nome, asy nos vivos, como nos que asy faleceraõ, e a seus descendentes…”. Os perdões, que o rei tinha concedido anteriormente aos cunhados e à sogra, já revelavam de certa maneira uma reabilitação do infante D. Pedro.

Neste contexto acreditamos que o rei tenha participado na realização dos Painéis (1464-1467) cuja iniciativa deve ter pertencido à sua tia D. Isabel. Cremos que foi mais uma forma de D. Afonso V se exorcizar daqueles funestos acontecimentos do passado.

Antes de invadir Castela, para apoiar as pretensões da sua sobrinha D. Joana ao trono deste reino, D. Afonso V fez um testamento (Abril de 1475) em que pede perdão pelos actos que praticou durante o seu reinado “…a todos estes com amor humildade que posso peço que per amor de Deos da Virgem Maria qualquer mal ou dano que lhe fizesse ou por minha causa lhe fosse feito me perdoem e conheçam como segundo a idade em que ouve meu regimento e os trabalhos em que despois sempre fuy ajuntando tos esto ao grande carrego que he de reger este regno nom he de maravilhar alguãs cousas fazer erradas e eu assi pesso de Deos lhe perdoe qualquer erro que contra mjm fizessem e ey por tirado e tiro de mim todo rancor e escandalo que dalguns ou dalgum tivesse.” [4] Neste documento o rei, mesmo depois de já ter patrocinado a feitura dos Painéis, acrescenta mais um pedido de desculpas pelas acções que efectuou contra a família de D. Pedro.

Uma obra desta envergadura e qualidade só pode ter sido realizada com fundos oriundos das cortes da Flandres e de Portugal. Também o facto de aí estarem retratadas figuras de primeiro plano destas famílias régias (em particular da portuguesa), demonstra que a origem da pintura teve o contributo destas cortes.

D. Afonso V apoiou de um modo claro as artes e, mais teria feito se não fosse a penúria do tesouro real provocada pelas despesas associadas às acções militares no norte de África e à guerra com Castela ligada à sucessão de Henrique IV. Na pintura são referenciados, como estando ao seu serviço entre outros, os pintores João Eanes e Nuno Gonçalves. Foi amigo das letras pois “Foi o primeiro Rei d’estes reinos que ajuntou bons livros, e fez livraria em seus paços…” [5] e instalou no seu paço um scriptorium. Teve ao seu serviço Gomes Eanes de Zurara, cronista e guardador da Torre do Tombo. Quanto à música “Folgou muito d’ouvir musica, e de seu natural sem algum artificio teve para ella bom sentimento[6] Contribuiu igualmente para as obras na Sé de Lisboa e no Mosteiro da Batalha.







[1] Cortesia Wikipedia
[2] SOUSA, António Caetano de - Provas da História Genealógica da Casa Real Portuguesa, Tomo II, Lisboa, 1742, págs. 1-2
[3] SOUSA, António Caetano de - Op. cit., págs. 3-5
[4] SOUSA, António Caetano de - Op. cit., págs. 11-12
[5] PINA, Rui de - Chronica de El Rei D. Affonso V, Vol. III, Lisboa, 1902, cap.CCXIII, pág. 151
[6] PINA, Rui de - Op. cit., Vol. III, Lisboa, 1902, cap.CCXIII, pág. 152