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terça-feira, 23 de setembro de 2014

11. O INFANTE SANTO E FREI JOÃO ÁLVARES

Nos Painéis estão representados o Infante Santo, na figura do “cavaleiro mouro” (fig.53)[1] do painel dos Cavaleiros, e o seu secretário, companheiro de cativeiro e mais tarde seu biógrafo, Frei João Álvares, na personagem prostrada do primeiro plano do painel dos Pescadores (fig.54)[2]. Ambos estão alheados ao que acontece nos painéis centrais, virando as cabeças numa direcção diferente daquela das personagens que estão à sua volta. Na nossa perspectiva há uma razão para que esta situação aconteça e que exporemos mais à frente.
 



Fig. 53                               Fig. 54
 
Tríptico do Infante Santo encomendado pelo Infante D. Henrique para o mosteiro da Batalha depois de 1450 e actualmente no Museu Nacional de Arte Antiga, foi a obra de arte que estabeleceu a iconografia do Infante Santo (fig.55)[3]. A partir daqui o mártir de Fez é representado com os cabelos e as barbas compridos, agrilhoado nas mãos e nos pés e acompanhado ainda com uma enxada e um livro. A fonte destes atributos encontra-se na Crónica dos Feitos, Vida e Morte do Infante Santo que morreu em Fez, escrita por Frei João Álvares a pedido do infante D. Henrique cerca de 1452, mas cuja 1ª impressão só aparece em 1527. Conclui-se que o autor daquele tríptico deve ter recebido indicações directamente de Frei João ou consultado o manuscrito daquela crónica.


                                                        Fig.55                       Fig.56



Conhecem-se outras representações do Infante Santo, inspiradas nesta obra. Estão neste caso a estátua existente no lado esquerdo do pórtico ocidental do mosteiro dos Jerónimos (c. 1520), um retrato (fig.57) incluído na obra Anacephalaeoses[4] e um conjunto de gravuras inseridas na publicação Acta Sanctorum[5], que ilustram em dez painéis a vida e os martírios do infante D. Fernando em Marrocos, das quais fazem parte as figs.56 e 59 a 61.

Repare-se na grande semelhança[6] que existe entre o retrato do infante D. Fernando presente nos Painéis (fig.57)[7] e aquele incluído na obra Anacephalaeoses (fig.58): o mesmo tipo de nariz pontiagudo, sobrancelhas e olhos idênticos, cabelo comprido e ondulado, barba comprida sendo bifurcada por debaixo do queixo. Esta obra inclui a seguinte observação relativamente a esta gravura: “Effigies, quam hoc loco contemplaris, ab illo exemplari extracta est, quod Bataliae ipsius sepulchro est impositum, sed ibi vulgari habitu, hic armorum ornatu insignis depingitur.” [8] Isto é, segundo a tradução publicada por José Saraiva: “O retrato que se vê aqui foi copiado do exemplar que na Batalha está colocado sôbre o sepulchro do mesmo Infante; mas lá está com trajo vulgar, aqui vai representado com a armadura de guerreiro. [9] Esta armadura é claramente do início do século XVII, contemporânea daquele livro. A coincidência daqueles detalhes leva-nos a deduzir que se o retrato que está publicado naquela obra seiscentista está identificado como o infante D. Fernando, então a figura presente nos Painéis também representa o Infante Santo.

Se colocarmos estes dois retratos lado a lado com o terceiro atrás referido (fig.59), este em posição invertida para melhor comparação, só podemos concluir que são todos do Infante Santo.
Fig.57                        Fig.58                        Fig.59
Um parêntesis para referir que o volume da Acta Sanctorum onde se encontra a fig.59, também reproduz a gravura publicada anteriormente na Anacephalaeoses (fig.58).

No retrato dos Painéis o capacete e a armadura substituem o barrete e a túnica, de modo a se enquadrarem no ar mais bélico do painel dos Cavaleiros. O Infante Santo está aqui representado com o traje militar que envergava na tentativa da conquista de Tânger. A direcção do seu olhar, contrária à dos outros cavaleiros e não focalizada nos painéis centrais, mostra que a sua presença não se enquadra no contexto histórico representado nos Painéis, isto é, não estava presente quando se deram aqueles acontecimentos. No entanto, não foi esquecido e por isso lá está figurado.

A tez queimada de D. Fernando ilustra o efeito que o sol ardente do norte de África exerceu sobre a sua pele quando cavava na horta ou tratava dos animais.

O brilho que emana da luz reflectida no seu capacete, faz-nos recordar, em parte, o trecho da crónica de Frei João: “…em certos dias viaõ ao redor daquelle ataude tanto lume, e claridade, que naõ podiaõ ter os olhos em direyto daquelle lugar, em tanto que naõ podiaõ divisar de que era aquelle lume.” [10] O autor está a referir-se ao caixão do infante quando este se encontrava pendurado nas ameias da muralha de Fez.

Frei João Alvares[11] terá nascido por volta de 1405, tendo entrado ao serviço do infante D. Fernando aos dez anos, com a função de moço de câmara. Aos vinte assume o cargo de secretário ou escrivão da câmara. Existia uma grande proximidade entre ele e o infante, dado que João Álvares participava nas cerimónias de culto e em todas as horas canónicas em que D. Fernando estivesse presente. Verifica-se no testamento que o infante deixou em Lisboa, antes de partir para Tânger, que João Álvares era contemplado com uma importância superior à dos outros dois secretários. São conhecidas uma série de cartas, que redigiu como escrivão do infante entre os anos de 1428 e 1437, concluídas com a expressão “Joham aluarez a ffez”. Acompanha o infante D. Fernando na trágica expedição a Tânger de 1437. Na sequência deste desastre o infante fica refém como garantia de que os portugueses entregariam Ceuta em troca da sua libertação. João Álvares é um dos sete criados que D. Fernando escolhe para o acompanhar no que seria o seu cativeiro.

Inicia-se então para estes reféns um longo período no cárcere, que se prolongará por onze anos, localizado inicialmente em Arzila (cerca de 8 meses) e depois em Fez. Os prisioneiros portugueses, sempre que saem da prisão para irem trabalhar, sofrem os maiores vexames onde são injuriados, cuspidos, apedrejados, escarnecidos e ultrajados pela população local. Os carcereiros, vendo que o acordo estabelecido com os portugueses não se iria concretizar, agravam ainda mais as condições dos reclusos tapando completamente as janelas da prisão. Depois são despojados das roupas e haveres, e passam a usar cadeias de ferro nos pés. Quando trabalham fora da cidade, as cadeias são colocadas também no pescoço. O infante, após ter sido gravemente martirizado, passa a limpar os animais que se encontravam espalhados pela horta. Trabalham todo o dia com a enxada até ficarem, nalgumas situações, com chagas nas mãos. A alimentação diária limita-se a dois pães e água. A prisão passa a ser uma cova onde todos ficam retidos, não lhes sendo permitida a sua limpeza. Acumulavam-se assim todo o tipo de dejectos propícios a serem um foco de doenças.

O Infante Santo acaba por morrer em meados de 1443 na sequência de uma diarreia. O seu corpo foi aberto para se retirarem as vísceras, com o objectivo de ser embalsamado e depois pendurado nas muralhas da cidade. As suas entranhas são guardadas em duas panelas de barro e enterradas a um canto da masmorra.

Passados cinco anos (1448) João Álvares é libertado em troca de um mouro, graças à intervenção do infante D. Pedro.

João Álvares regressa ao norte de África em 1450 para resgatar com sucesso dois companheiros de prisão (João Rodrigues e Pêro Vasques) e trazer secretamente as relíquias do infante D. Fernando que tinham sido enterradas no solo da prisão. No início de Junho de 1451 entrega em Santarém essas relíquias a D. Afonso V. Este incumbe João Álvares e João Rodrigues de as levarem, num cofre de madeira forrado de damasco preto, para o mosteiro da Batalha para serem colocadas no túmulo destinado a D. Fernando. No caminho passam por Tomar onde se encontra o infante D. Henrique que decide acompanhá-los e também encomendar as cerimónias religiosas para celebrar a deposição das relíquias. Após esta missão João Álvares ingressa ao serviço da casa do infante D. Henrique, que lhe encomenda a biografia do irmão falecido em Fez. É por esta altura que entra para a ordem de S. Bento de Avis, a cujo mestrado tinha pertencido ao infante D. Fernando. Aqui assume lugares de relevo sendo nomeado, em 1460, abade do mosteiro de Paço de Sousa, cargo que exerceu durante 23 anos. Nesta função procedeu a uma reforma profunda onde implementou um conjunto de normas com vista a restabelecer a disciplina em todos os níveis de funcionamento do mosteiro.

No início de 1467 desloca-se à Flandres a pedido da duquesa D. Isabel, certamente na qualidade de companheiro de infortúnio do seu irmão D. Fernando e de protegido do outro irmão D. Pedro que o resgatou da prisão. A presença de Frei João Álvares nas terras do ducado da Borgonha deve estar relacionada com a vontade expressa pela duquesa da Borgonha, da criação de uma capela na igreja de Santo António em Lisboa dedicada à memória do Infante Santo. A sua estada nas terras do ducado deve-se ter prolongado por cerca de dois anos. Daqui dirige-se a Roma onde consegue no início de 1470 o breve da aprovação das Constituições para a área de influência do mosteiro de Paço de Sousa, e traz duas bulas, uma a autorizar a instituição de uma capela de culto ao Infante Santo em Lisboa e a outra a conceder indulgências a quem assistisse às suas missas de sufrágio.

Em Agosto de 1471 D. Afonso V conquista Arzila e consegue aprisionar reféns próximos do dirigente da cidade, que servirão depois de moeda de troca para o resgate dos ossos do Infante Santo que, após um período de negociação, serão devolvidos em 1472. Frei João Álvares está presente no momento da chegada destes restos mortais a Lisboa e é ele que retira a urna do navio. O antigo secretário do infante D. Fernando acompanhará ainda o ataúde até ao momento da colocação das ossadas no respectivo túmulo no mosteiro da Batalha. Este clérigo morreu por volta de 1490.

Verificamos assim que a amizade, carinho, proximidade e dedicação que Frei João Álvares prestou ao Infante Santo justifica a sua presença numa pintura onde se encontra também o seu antigo amo. Também os serviços posteriormente prestados aos irmãos do mártir (Pedro, Henrique e Isabel) e ao rei, reforçam a razão da sua figuração nos Painéis. Finalmente a sua presença também é justificável se recordarmos que desempenhou diversas missões ao serviço dos doadores da pintura, D. Isabel e D. Afonso V.

Frei João Álvares, como referimos no início deste capítulo, é a figura prostrada do painel dos Pescadores, que assume uma postura singular, em cujo rosto é visível uma expressão de sofrimento e de agonia. Estes pormenores coincidem com a descrição feita por Frei João sobre o momento em que, após a morte de D. Fernando, os portugueses são chamados ao local onde se encontrava o corpo do infante: “E assim como aquelles, que em vida se podiaõ comparar a mortos, taõ atribulados, como se pòde cuydar quem bem sente das cousas, se lançàraõ de bruços em terra, dando com as cabeças no chaõ. E diante aquelle virtuoso, e santo corpo depenavaõ barbas, e cabellos, e se ferirão nos rostos, beyjando os pés e maõs de seu senhor, cujos membros estavaõ em tanta desenvoltura, com se fora vivo, e tinha taõ alegre, e bem assombrado rosto que parecia visaõ Angelica. Não poderaõ por hum espaço fallar palavra, que o impeto do choro impedia de todo ponto suas fallas. E como poderaõ fallar, ainda que cansados da trabalhosa dor, arrebentàraõ de novo juntamente em lagrimas…”[12]
                                     Fig.60                                Fig.61

Frei João é retratado com a idade que tinha no momento da pintura dos Painéis, mostrando assim a continuidade da sua devoção pelo Infante que se iniciou na sua infância. O traje que enverga poderá ser confundido com o hábito franciscano, mas não se vislumbra nele o cordão que os frades desta ordem usavam à cintura. Cremos que se trata da túnica que lhe entregaram no cativeiro em Fez: “…e roubaràraõ-nos dessa pobreza, que já tinhaõ de vestidos, dando a cada hum seu pedaço de cobertas de burel, com que se vestiraõ…” [13] É possível visualizar, apesar do mau estado da pintura, que as roupas usadas pelas duas personagens presentes na parte inferior do primeiro painel do Tríptico do Infante Santo, são idênticas às de Frei João Álvares veste no painel dos Pescadores. Aquelas duas figuras, vestidas igualmente com roupa de cor castanha, são cristãs (estão a rezar de mãos postas) e fazem parte do grupo de portugueses cativos em Fez. Igualmente se pode verificar, nalguns dos painéis (figs. 60 e 61) que compõem a gravura do retábulo da Acta Sanctorum, que o tipo de vestimenta que esses portugueses envergam se aproxima daquele usado por Frei João Álvares.







[1] Cortesia Wikipedia
[2] Cortesia Wikipedia
[3] Painel central. Tríptico do Infante Santo, Séc.XV, Autor desconhecido, MNAA, Lisboa
[4] VASCONCELLOS, Padre António de. – Anacephalaeoses id est, summa capita actorum Regum Lusitaniae, Antuérpia, 1621, pág.172 (pormenor). O autor da gravura foi o flamengo Cornelis Galle (1576-1650). Este retrato foi-nos revelado na obra de José Saraiva, que contudo identificou a figura santifiicada como o Infante Santo, sem fazer qualquer referência ao “cavaleiro mouro”.
[5] PAPEBROECK, Daniel. Acta Sanctorum, 1º vol. de Junho, Antuérpia, 1695, pág. 561
[6] CARVALHO, José dos Santos - Iconografia e Simbólica do Políptico de São Vicente de Fora, Lisboa [s.n.], 1965, pág. 266 – Este autor já tinha chamado a atenção para esta semelhança de feições, mas sem entrar em grandes detalhes.
[7] Cortesia Wikipedia
[8] VASCONCELLOS, Padre António de - Op. cit., pág.194
[9] SARAIVA, José – Op. cit., pág.135
[10] ÁLVARES, Frei João – Chronica dos Feytos, Vida e Morte do Infante Santo que morreo em Fez, Lisboa, 1730, Cap. XLII, pág. 314
[11] Esta breve biografia, onde se destaca as suas relações com os infantes da Ínclita Geração, em particular com D. Fernando, baseia-se na obra de CALADO, Adelino de Almeida – Frei João Álvares, Estudo Textual e Literário-Cultural, Coimbra, 1964, págs. 1-63.
[12] ÁLVARES, Frei João – Op. cit., Cap. XXXVIII, págs. 280-281
[13] ÁLVARES, Frei João – Op. cit., Cap. XXIV, pág. 161