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terça-feira, 23 de setembro de 2014

1. INTRODUÇÃO


“Pater omnipotens Dominum super omnes ad dexteram”

“O pai todo-poderoso, senhor acima de todos, está à direita”

in Livro aberto do painel do Infante


“Porque não há cousa oculta que não haja de manifestar-se,

nem escondida que não haja de saber-se e vir à luz”

Evangelho Segundo S. Lucas – 8:17


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Quando contemplamos os Painéis pressentimos neles a existência de um enigma que nos atrai e que nos leva a tentar a descodificá-lo. Existe nesta pintura um mistério que ainda não foi resolvido, apesar da publicação de inúmeras obras e artigos que tentaram desvendá-lo. A persistência desse segredo contribui para o constante fascínio que os Painéis exercem sobre nós.

Recorremos esporadicamente a citações de algumas obras já publicadas por outros investigadores. Reconhecemos que sem o seu labor não nos seria possível avançar com a nossa proposta de interpretação. Temos consciência no entanto que, pelo facto de ser inovadora em alguns aspectos e por expor uma teoria que vai contra o consenso geralmente aceite sobre o tema deste políptico, possa sofrer de imediato as mais diversas críticas O presente estudo não pretende opor-se a qualquer uma das teses já publicadas.

Algumas das nossas identificações coincidem com as daqueles autores porque, ao se fixar o tempo histórico retratado no Painéis, é natural que as figuras mais notáveis desse tempo apareçam na pintura e que possa haver, por isso, um alinhamento nessas identificações. Contudo nestes casos procurámos, mesmo assim, apresentar algo de novo que reforçasse essa identificação. Noutras situações as nossas propostas são inéditas.

Repetimos algumas vezes, ao longo deste trabalho, descrições de determinados acontecimentos históricos, nomeadamente aqueles que culminaram nas cortes de Lisboa (1439) e na batalha de Alfarrobeira (1449). Este facto deveu-se à necessidade de melhor justificar as propostas de identificação que fizemos para algumas figuras que intervieram, de modo diferente, nesses mesmos acontecimentos.

De referir ainda que utilizámos ao longo deste trabalho as denominações pelas quais os painéis são geralmente conhecidos e que foram estabelecidas em 1910 na obra “O Pintor Nuno Gonçalves” de José de Figueiredo.[1]

Quem analisar os Painéis com algum detalhe, acaba por perceber que há algo mais para além do que é perceptível à primeira vista. Este conjunto de pinturas contém mensagens escondidas que só o pintor e doadores poderiam facilmente compreender. Estas devem ser procuradas, identificadas, decifradas e interpretadas no contexto histórico em que foram idealizadas. Umas mensagens serão mais claras e óbvias enquanto outras serão mais subtis e ocultas. Existem pistas espalhadas nos Painéis que nos podem auxiliar na compreensão do significado profundo da obra e descobrir os temas que lá estão pintados. A dificuldade está em encontrá-las, descodificá-las e interpretá-las.

Não foi por acaso que o pintor inseriu uma série de objectos que são estranhos e/ou apresentados de um modo fora do comum. Estão neste caso, por exemplo, no painel dos Frades a caixinha preta e a tábua com olhais; no painel dos Pescadores a rede que os envolve; no painel do Infante a manga anormalmente larga da figura feminina mais jovem e um livro onde está inserida uma mensagem camuflada; no painel do Arcebispo uma corda enrolada com nós, um fio com uma medalha enfiado no barrete de um cavaleiro e um barrete dividido ao meio mas unido por quatro laços; no painel dos Cavaleiros um cavaleiro que segura a espada pela extremidade e não pelo punho; no painel da Relíquia um caixão e um livro aparentemente ilegível.

Para se entender o significado dos Painéis temos que analisar em primeiro lugar o seu conjunto, depois avançar com hipóteses sobre o significado da pintura, enquadradas no seu tempo histórico e, finalmente recorrendo às pistas atrás referidas, perceber a razão da sua existência. Depois de decifrados os assuntos há que identificar as personagens enquadrando-as nas representações cénicas expostas, tendo por base os factos históricos que as possam suportar.

Não visualizamos nos Painéis qualquer comemoração em honra das campanhas militares do norte de África ou da sua preparação para as mesmas. O número de figuras militares é reduzido face ao total das sessenta personagens presentes. Esta obra não tem o carácter bélico patente nas tapeçarias de Pastrana, estas sim comemorativas das vitórias norte-africanas de D. Afonso V. A presença das personagens com armaduras remete-nos para um outro acontecimento militar.

Não se vê, igualmente, a existência de qualquer acto de veneração em direcção à figura santificada. A assembleia não está ali reunida para lhe prestar culto. O santo está presente apenas como convidado, diríamos hoje, para presidir a dois actos. É apenas um intermediário com um papel relativamente secundário no contexto da composição. O santo não será a peça mais importante ou fulcral na decifração do enigma dos Painéis. Cremos até que a sua colocação em posição de destaque teve o intuito de desviar as atenções, de modo a que o assunto da pintura não ficasse tão evidente.

Vislumbra-se ali uma atmosfera de amargura que o pintor procurou ilustrar, de acordo com as indicações dadas pelos doadores. As figuras estão retratadas com um ar de recolhimento, de gravidade e de mágoa. Aparentemente a assembleia transmite uma certa rigidez, o que contudo é negado pelos pequenos movimentos executados por algumas figuras. Há uma evocação triste que perpassa por todas as personagens, cujas presenças se associam ao tema principal da pintura: perpetuar a memória de uma pessoa e/ou facto que teve um impacto profundo nos doadores

Só descortinamos dois acontecimentos, que ocorreram nos meados do século XV, que atingiram o carácter de tragédia ao nível da família real e que possam justificar um conjunto de painéis desta dimensão e qualidade: o cativeiro do infante D. Fernando, na sequência da conquista falhada de Tânger em 1437 e a sua morte em 1443, e o falecimento do seu irmão mais velho, o infante D. Pedro, na batalha de Alfarrobeira em 1449. As lutas fratricidas ou guerras civis deixam, muitas vezes, marcas mais profundas do que aquelas travadas contra forças estrangeiras.

Defendemos que o tema principal dos Painéis seja a reabilitação da memória do infante D. Pedro, que se encontra retratado no local mais importante do políptico, isto é, na figura do cavaleiro com um joelho no chão que ocupa o primeiro plano do painel do Arcebispo.

Nos Painéis estão representados, como iremos expor mais adiante, não só os apoiantes mais próximos deste infante mas também os seus familiares mais chegados.

Após se perceber a razão da existência da pintura, mais fácil se torna procurar e propor identificações para as figuras principais. Procurámos sempre que possível, e de modo a fundamentar melhor a nossa proposta, identificar uma personagem tentando fazer corresponder um qualquer detalhe ou pormenor da sua figura com os relatos extraídos das crónicas coevas, não esquecendo a proximidade que algumas tiveram com o infante D. Pedro. A colocação de muitas personagens lado a lado, mostrando entre elas uma certa afinidade, assim como o seu posicionamento relativo e a proximidade/associação com um objecto são factores que também não devem ser descorados quando se analisam os Painéis.

Estão retratadas personagens vivas conjuntamente com outras já falecidas. Este facto era usual, embora não frequente, na pintura desta época. No caso dos Painéis até é possível que a maioria das personagens principais já tivesse morrido e que a figuração dos vivos seja claramente diminuta. Esta situação justifica-se ainda mais quando se está perante uma obra cujos doadores, ainda vivos, evocam e reabilitam a memória de D. Pedro.

A nossa perspectiva pode ser discutível, mas as conclusões que apresenta, baseadas em factos históricos, tem a suportá-la dois tipos de documentos: a própria pintura e os relatos das crónicas que confirmam o que está exposto no políptico. O documento mais importante e verdadeiro, para se decifrar e entender o significado desta obra, continua a ser ela própria. Foi aqui que encontrámos os indícios e as pistas que nos levaram até à elaboração da presente proposta de interpretação.

Este tipo de abordagem já tinha sido defendido por Almada Negreiros: “E, enquanto outros acreditavam apenas em documentos e os rebuscavam e tresliam, o melhor documento esteve sempre à vista publicamente no único elemento existente do todo da obra, as seis tábuas.” [2] Afonso Botelho vai mais longe na sua proposta: “Dentro do método decifrador, pareceu-me que o processo mais eficaz, porque mais coerente com as premissas aceites, seria o de encontrar e interpretar o documento autêntico, ou seja, o que no quadro, e não fora dele, pode considerar-se como documento apresentado. Ora, o que realmente se apresenta como frase lógica e intencional é aquele que salta à vista de quem o procura, ou mesmo de quem o não procura: o livro aberto para a personagem régia. Ali parece estar o documento dos documentos, aquele que o próprio autor do quadro escolheu para assinalar alguma relação factível.” [3]
A interpretação que propomos, elaborada com espírito crítico, analítico e lógico pretende ser sintética e objectiva e visa contribuir, com novas abordagens e caminhos de investigação, para a solução do enigma chamado Painéis





[1] FIGUEIREDO, José de - O Pintor Nuno Gonçalves, Lisboa, 1910
[2] Citado por BOTELHO, Afonso – Estética e Enigmática dos Painéis, [s.l.], 1957, pág. 14
[3] BOTELHO, Afonso – Estética e Enigmática dos Painéis, [s.l.], 1957, pág.75